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  • Foto do escritorJornal do Juvevê

Razão


Sentada diante do computador e cheia de sua própria razão, ela estava cansada de ser o que era. Se sentia injustiçada, atacada, excluída. O mundo a detestava, maltratava, por ela ser do seu modo tão peculiar. Em meio as suas lamúrias, diante da injustiça que sentia ter sofrido e cercada de sua verdade, acreditava que não havia nenhuma possibilidade de ter cometido um erro. Então, decidida, resolveu que era hora de partir. Levantou-se, desligou o monitor do computador a sua frente, encaixou a cadeira no seu devido lugar, alinhou de forma milimétrica a pilha de livros que estavam em cima da mesa, suspirou de forma tão profunda que lhe doeu o peito. Deixaria tudo para trás, afinal nada daquilo lhe pertencia, nem mesmo aquele lugar era mais seu. Deu adeus aos livros que a cercavam como quem se despedia de filhos amados que nunca mais os veriam. Por um momento, pensou em fazer um longo discurso de despedida, explicando cada detalhe da injustiça que havia sofrido, mas não havia necessidade, pois eles eram testemunhas de tudo e sabiam da sua razão. De pé diante da porta, olhando para aqueles velhos amigos com os olhos marejados, esboçou um pequeno sorriso. Pegou no bolso o celular e abriu o aplicativo de música, colocando Can’t Get You Off My Mind para ouvir, essa seria a trilha sonora que embalaria aquele momento de sofrimento, Lenny Kravitz seria sua companhia na partida. Quando fechou a porta de forma delicada para que não fizesse nenhum barulho, sentiu-se como uma fugitiva. Não queria ser vista ou notada, foi então que desceu as escadas de forma lenta e sutil. Precisava respirar, talvez correr ou gritar. Se encaminhou até o portão e o abriu de forma suave e demorada. Como se esperasse que a qualquer momento alguém viesse para segurá-la. Como não ouvia nada além da sua respiração ofegante, colocou os pés na calçada e se sentiu perdida nas possibilidades. Que caminho deveria seguir? Esquerda ou direita, esquerda ou direita, repetia a si mesma. Olhava de um lado para o outro, até que ergueu a cabeça e seguiu. Não ia fazer diferença a direção. Foi nesse instante que aninhou os seus demônios dentro de si de forma aconchegante, gostava de alimentá-los, senti-los por perto, eles a faziam acreditar que de certa forma ela não estava só. Por isso, sempre os mantinha por perto, não queria se livrar deles, não naquele momento, tinha que acalmá-los e fingia sentir piedade diante das suas súplicas. Precisava fugir, precisava se tornar algo novo, ser uma outra pessoa. Sem saber para onde ir, apenas caminhou, queria que seus pés sangrassem, doessem mais que a sua alma. A dor física naquele momento pareceu tentadora, pois nela poderia entorpecer seus sentimentos.

Quando por fim parou em uma esquina para observar atentamente o homenzinho vermelho piscando, riu, gargalhou a plenos pulmões. Enlouquecida, ridicularizou aquela imagem. Quem era ele para dizer o que ela deveria fazer. Dizia a ele que parava se quisesse, se precisasse ou desejasse. Não o obedeceria, ele não lhe daria ordens. Ninguém mais lhe diria o que fazer e como fazer, tudo seria a seu modo. Ela era livre, era capaz de saber alimentar a sua razão – fosse ela real ou não. Depois de andar por horas a fio, se viu parada em frente ao mesmo lugar do seu ponto de partida.

 

Olhou de forma quase hipnotizada. Abriu o portão, subiu as escadas e, por fim, já cansada, disse: Se voltei, meus filhos, é por vocês e mais ninguém, mas já vou avisando de hoje em diante só há uma verdade, a minha! Cada um que lute pela sua.

 

Daniela Amaral

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