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O caso Palestina/Israel da perspectiva liberalA pauta que deve unificar esquerda e direita

Foto Limpeza étnica de 1948, do banco de imagens da ONU.
Foto Limpeza étnica de 1948, do banco de imagens da ONU.

Palestina/Israel é um tema marcado por preconceitos, que impedem uma compreensão objetiva. Prevalecem falsas representações, como a de um conflito milenar, religioso ou estritamente contra o terrorismo. Em contrapartida, esta centenária questão pode ser analisada corretamente de várias perspectivas, inclusive da liberal.


Historicamente, as democracias liberais constituem uma superação do dito Antigo Regime, caracterizado pelo poder monárquico autocrático sobre uma sociedade dividida em estamentos ou estados, logo estruturalmente desigual. Fundamentos básicos do liberalismo são, justamente, a igualdade legal de todos os sujeitos, a categoria de cidadão em detrimento do súdito do poder, as liberdades básicas (reunião, representação, expressão, intimidade), o direito à vida e à propriedade e a noção do poder emanado do povo representado, e não de um elemento exterior, como Deus.


Como é Israel o Estado direta ou indiretamente soberano em todo o território cabe averiguar sua adequação ou não a esses pressupostos básicos, recordando que a não vigência dos direitos e liberdades básicas é causa comum de conflitos. Ao fazermos esse exercício básico de aproximação entre a realidade concreta e os princípios liberais, percebemos contradições gritantes, logo as causas mais profundas da questão. Vejamos com mais detalhes.


Israel se constituiu em 1948, em uma parte da Palestina histórica. Legalmente, foi definido como “Estado judeu”. Ou seja, oficialmente associado a um dos grupos étnicos presentes no território, que passou a governar integralmente de 1967 em diante. Longe de ser um dispositivo legal obsoleto, em 2018, uma Lei Básica reafirmou o caráter judaico do Estado e o direito exclusivo desse grupo étnico à autodeterminação em todo o território.


Ponderemos: O que resultou nas situações onde um Estado soberano em um território multiétnico reivindicou um pertencimento racial específico? Sempre a negação da igualdade legal, das liberdades básicas e a discriminação sistemática. Da Alemanha Nazista ao sul dos Estados Unidos, passando pela África do Sul do apartheid, as tensões raciais floresceram, com resultados trágicos.


No caso específico aqui em análise uma situação análoga já está bem documentada. Acusações de que Israel mantém um regime de apartação racial são antigas, constando em resoluções da Organização para a Unidade Africana (antecessora da União Africana), nos documentos de relatores especiais da ONU e até em parecer da Corte Internacional de Justiça. Esta, em 2024, ao avaliar questões como as colônias na Cisjordânia também considerou procedente a acusação de que Israel viola a proibição de se praticar apartheid.


Esse debate ganhou maior repercussão justamente a partir da Lei Básica de 2018, que enfatizou que o Estado israelense representa apenas um dos grupos étnicos sob sua soberania e não toda a população. Este é o cerne da questão: a violação do preceito liberal mais básico, que é a igualdade legal. Para quem quiser se aprofundar, a organização israelense Adalah compila as leis discriminatórias do Estado e um livro específico trata especificamente da questão do apartheid na Palestina/Israel.

Uma série de negações de outros princípios liberais (direito à propriedade, às liberdades básicas) está associada a essa discriminação estrutural, que vertebra um Estado racialmente definido. No contexto da fundação de Israel, tanto se travou uma guerra contra exércitos dos países árabes vizinhos quanto se promoveu uma expulsão em massa da população não judaica, a fim de viabilizar o caráter racial do Estado.

Então, centenas de milhares de palestinos fugiram ou foram expulsos. Foram expropriados coletivamente, revertendo abruptamente o quadro da propriedade fundiária no território, que até então era de maioria esmagadora palestina. Leis foram criadas para legalizar esse roubo massivo de terras, como a estatização das propriedades dos considerados “ausentes” (no caso, palestinos mantidos à força além das fronteiras do recém-criado Estado). Eis o porquê do principal símbolo dos refugiados palestinos ser a chave, representando a perspectiva de retorno e reintegração. Inclusive a maioria da população de Gaza é de refugiados e descendentes. Logo, o direito à propriedade, razão de ser do Estado, também é negado para um dos grupos raciais, inclusive nas contínuas desapropriações promovidas pela expansão das colônias na Cisjordânia, com todo o respaldo legal e institucional do exército e do judiciário israelense, em consonância com a lei de 2018, que oficializou a colonização/judaização do território como princípio e valor estatal e nacional.


Há ainda a bivalência da cidadania em Israel. Enquanto a população judaica desfruta do estatuto de cidadã e de nacional, e qualquer cidadão judeu de um terceiro país pode emigrar e obter esses direitos, apenas uma parte muito restrita dos palestinos possui cidadania israelense (jamais nacionalidade) e as demais parcelas não podem sequer reivindica-la. A grande maioria está ainda em condição análoga a de súditos, no sentido de sujeitos privados de direitos e submetida ao poder soberano discricionário. Isto afeta não somente o campo dos direitos civis e políticos, como também o dos direitos sociais, econômicos e culturais, como o direito básico à propriedade.


Manter os súditos nessa condição só é possível a partir de uma série de supressões de liberdades básicas, como de organização, reunião e expressão. Assim que boa parte da população palestina, tal como a sul-africana de outrora, já foi encarcerada por motivos políticos e outra foi ferida ou assassinada, inclusive de modo sistemático a se considerar os últimos relatórios sobre Gaza, que apontam para centenas de milhares de vítimas, majoritariamente mulheres, crianças e idosos. A relatoria internacional e mesmo israelense é consensual em demonstrar que, em se tratando dos palestinos, a repressão estatal é generalizada e vigora há décadas, inclusive com julgamentos e prisões arbitrárias, assassinatos e tortura, o que também nessa dimensão aproxima as práticas estatais israelenses do Antigo Regime. Tal como na África do Sul de outrora, se para os cidadãos e nacionais judeus vigora a lei, o grosso dos palestinos está sujeitado há décadas a um regime de exceção legal, com práticas semelhantes a qualquer ditadura, logo a antítese da democracia liberal padrão na qual vigora igualdade jurídica e estado de direito.


Por fim, resta óbvio que o poder político instituído ou soberano não emana de toda a população submetida ao Estado soberano de Israel, mas apenas de uma parte dela, que utiliza dos aparelhos estatais para restringir a presença do outro grupo e o reprimir. Na interpretação de um geógrafo israelense, o coração da questão é a política de judaização/despalestinização do território levada a cabo pela “etnocracia” israelense. Portanto, Israel não é uma democracia, no sentido do “poder do povo”, mas uma “etnocracia” (poder de uma etnia), que sequer tem território definido, pois em constante expansão (contínua colonização da Cisjordânia e possível recolonização de Gaza).


Espero ter facilitado a compreensão da devida causalidade dos fatos. A causa primeira do conflito é a apartação e não a resistência à discriminação sistemática, que é sua consequência lógica e legal. Se a resistência palestina a esse processo é em si legal e legítima, tratando-se do direito à rebeldia, à insurgência perante a injustiça, isso não quer dizer que possa empregar qualquer meio, pois também pode violar as leis humanitárias. Do mesmo modo, as violações cometidas no 7 de outubro jamais explicam ou justificam o genocídio que se seguiu, que é um “ato desumano” previsto dentro da própria definição legal dos regimes de apartheid. Estes tampouco podem reivindicar o “direito à defesa”, pois são ilegais em si e precisam ser desmantelados.


Fábio Bacila Sahd

Professor de história no departamento da UFPR e autor de vários artigos e livros sobre Palestina/Israel

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